quarta-feira, 18 de julho de 2018

Dois seriados para se pensar os padrões heteronormativos - parte 02

Olá, leitoras e leitores.

Hoje volto com a discussão sobre seriados para quebrar a banca da heteronormatividade, e trago o segundo que quero recomendar: The Fall.

ALERTA: A ANÁLISE CONTÉM SPOILERS DOS SERIADOS.



Eu não sei dizer exatamente como cheguei a esse seriado, mas ele também é policial e todas as temporadas giram em torno do mesmo crime - e do mesmo criminoso. Não pensem que, com isso, ele se tornou chato e repetitivo, pois The Fall é intrigante e te mantém preso à trama até o último episódio. 

Com um roteiro mais consistente do que o de The Killing, The Fall conta a história de um assassino em série e da investigação montada para capturá-lo. Essa investigação é comandada por Stella Gibson, convidada especialmente para o caso, e é ela a nossa personagem destaque. 

Stella, que é interpretada pela maravilhosa Gillian Anderson, está longe de ser uma mulher padrão - ela é linda, elegante, magra e está sempre maquiada, mas ela destoa nitidamente dos papéis femininos em geral. E The Fall não tem nenhuma sutileza em criticar a heteronormatividade, já que as falas de Stella são diretamente afrontosas à supremacia masculina, principalmente no meio policial. 




Em um dos primeiros momentos da série, ela convida um total estranho, que também é policial mas que ela acaba de conhecer, para seu quarto. Stella não se importa em dar vazão à sua sexualidade e, inclusive, desafia a heterossexualidade ao convidar, também, uma amiga para uma noite mais íntima. 


Stella constantemente confronta os homens em espaços de poder e frequentemente frustra suas expectativas em relação ao comportamento feminino. Uma de suas passagens me faz lembrar a leitura de Leonardo Boff e Rose Marie Muraro, quando eles afirmam que a origem da vida é feminina e que o masculino (cromossomo Y) é uma espécie de "desvio". 


O seriado nos apresenta, além do enredo, que é muito bom, personagens que passam uma mensagem importante. Tive a impressão de que Stella Gibson é realmente a estrela da série e que todo o resto existe para girar ao seu redor, ou seja, para dar a ela oportunidades de mostrar o quanto ela é maravilhosa. 

Alguns momentos pontuais:
1) Stella não demonstra nenhum tipo de temor de homens, enfrenta-os nos espaços de poder e não se deixa subjugar por ser uma mulher em um espaço essencialmente masculino. 
2) Stella cerca-se de mulheres e, imediatamente, reconhece as capacidades das mulheres ao seu redor.
3) Ela tem empatia pelo sofrimento de outras mulheres e não julga.
4) Stella não demonstra vergonha de revelar segredos íntimos. Ao saber que Paul Spector leu seu diário e quando o objeto vira prova na investigação, ela fala abertamente sobre as situações envolvendo os sonhos que tem e sobre sua vida privada sem que isso a deixe nitidamente constrangida. 
5) Stella confronta os homens que desejam refrear sua liberdade sexual, apontando para a própria liberdade sexual dos homens. Se eles possuem o direito de relacionar-se com quem quiserem e como quiserem sem ser julgados por isso, elas também. 
6) Stella não teme Paul Spector - ele a intriga. E ela não o trata como doente nem o permite que se justifique, ela o trata como um misógino estuprador e assassino, apenas. 



Em alguns momentos, considerei que Stella é suficientemente mordaz para passar a mensagem correta. Não há como ser sutil em relação à desigualdade entre gêneros - ela existe há tanto tempo e de tantas formas que parece que sempre existiu. E, afinal, nenhuma mulher vai conquistar "seu espaço" (o espaço de todas nós, como seres humanos completos que somos) sem uma ruptura total com um sistema que foi construído sobre bases de opressão e desigualdade. 

Stella não odeia homens nem quer ser um homem. Ela odeia um sistema que não a respeita como uma mulher plena e capaz de chefiar uma investigação enorme, de enfrentar um assassino monstruoso (que Stella humaniza e trata como homem), que não considera suas habilidades em antes julgá-la apenas por ser uma mulher no comando. Ela também é confrontada o tempo todo, mas só notamos o seu enfrentamento porque normalizamos a atitude afrontosa do homem. 

E ela não é grosseira nem eleva a voz. Tirando a vez em que ela quebrou o nariz de seu chefe porque ele cruzou limites (sim, ela fez isso!), Stella geralmente confronta os homens que a desqualificam ou julgam com um tom de voz sereno e com uma contestação clara o objetiva da situação. 

Um dos momentos mais marcantes, para mim, da fala de Stella sobre a forma como a sociedade machista encara a sexualidade de homens e mulheres foi quando ela confrontou um colega que a criticava por ter se envolvido sexualmente com outro colega, casado:

É isso que realmente incomoda você, não é? Fica uma noite só? O homem transa com a mulher, o sujeito é o homem, o verbo é transar e o objeto é a mulher. Isso tudo bem. Mulher transa com homem. A mulher é o sujeito e o homem o objeto. Isso não é tão confortável para você é?


Existem diversas matérias enaltecendo o seriado The Fall pelos mesmos motivos que este - Stella Gibson é uma estrela feminista que precisa ser considerada. Mesmo que eu tenha demorado algum tempo para encontrar o seriado, valeu a pena cada minuto assisti-lo e repetir algumas falas. Espero que vocês façam o mesmo. 



PS: encontrei uma matéria do Telegraph cujo título sugere que The Fall é "anti-homem". Não tem nada mais equivocado do que isso, pois o feminismo não é essencialmente contra homens. É contra o machismo e um sistema que só valoriza o masculino. A ruptura com esse sistema não acabará com os homens nem representará uma opressão desses homens, apenas equilibrará a balança para que as mulheres não sejam mais inferiorizadas. 

Imagens obtidas no Google. Termos de pesquisa: "the fall stella gibson" e "the fall netflix" (sem aspas). 

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Dois seriados para se pensar os padrões heteronormativos - parte 01

Bom dia, leitoras e leitores.

Vim aqui recomendar dois seriados Netflix que, apesar de não serem recentes, são ótimos para refletir sobre os padrões heteronormativos, sobre as imposições sociais para o indivíduo, sobre os papéis que nos forçam a cumprir diariamente, desde que nascemos.

ALERTA: A ANÁLISE CONTÉM SPOILERS DOS SERIADOS.

Vamos começar com The Killing, seriado que foi adotado pela Netflix nas temporadas finais.


The Killing é um seriado policial, que tem como personagem principal uma detetive, Sarah Linden, da polícia de Seattle, e seu novo parceiro, Stephen Holder. Escrito por Veena Sud, o seriado tem algumas boas falhas de roteiro e chega a ser tedioso em alguns momentos, mas eu devorei as temporadas e, entre amar e odiar as personagens e suas atitudes, percebi que a mensagem de Sud é clara quanto à ruptura com tudo aquilo que se espera de alguém.

Holder e Linden investigando

Seattle é chuvosa e fria. O crime que faz o seriado girar é o assassinato de uma adolescente de 16 anos, Rosie Larsen. A polícia é mal aparelhada e a detetive Linden não é brilhante, assim como seu parceiro, que é um ex-viciado em anfetaminas. Eles usam celular de flip, tomam muita chuva e demoram muito tempo para desvendar um crime que outros seriados teriam explorado rapidamente.

Mas eu entendo que The Killing não é sobre crimes ou investigações policiais, mas sobre pessoas. Sarah Linden não é uma mulher estereotipada - ela tem um filho "sem pai" (o pai abandonou a ela e ao filho quando o menino tinha 3 anos), e é uma mãe "ruim", para os padrões sociais estabelecidos. Ela não se produz nem se maquia, vive descabelada, usa roupas masculinas e fuma bastante. Ela não reproduz o que se espera de uma mulher nem de uma mãe, e não consegue lidar muito bem com as dificuldades que a vida coloca em sua frente.

Sarah Linden em investigação


Holder também não é um mocinho padrão. Ele é ex-usuário de drogas ilícitas, ele comete muitos erros, fuma muito, está sempre vestindo moletom, o que, segundo seu chefe, não passa nenhum tipo de credibilidade em sua profissão.

A família da jovem morta também é apresentada de forma muito intensa, em que todas as personagens são exploradas e mostradas sem máscaras. A mãe da jovem assassinada enfrenta o luto se afastando de suas "obrigações" para com a casa, o marido e os outros dois filhos pequenos. Ela se tranca dentro de si mesma e ela vai embora, deixando tudo para trás. O pai, apesar de não saber lidar com a reação da mulher, é quem assume a casa e os filhos - mas não o faz da forma heróica que se espera. Ele também comete vários erros e acertos durante o período em que espera o desfecho sobre a morte de sua filha.

Família Larsen assistindo a uma matéria sobre o assassinato de Rosie.

A tia, que se torna a "mãe" substituta para os meninos, é uma mulher com passado de prostituição e que passa longe do exemplo de mulher explorado em diversos seriados. Em verdade, nenhuma personagem em The Killing segue os padrões que categorizam mocinhos e bandidos. O "bem" e o "mal" não estão presentes integralmente em nenhuma personagem, mas também nenhuma delas está afastada desses valores. O seriado lida com personagens em depressão, com doenças mentais não diagnosticadas, não tratadas, mal conduzidas pelos doentes e pelas pessoas que os cercam. 

Depois de resolvido o assassinato de Rosie Larsen, Linden e Holder se envolvem em outro crime bárbaro, que vitima toda uma família, inclusive crianças. Mais uma vez, as personagens apresentadas são disfuncionais, despadronizadas, e o seriado enfrenta temas como abuso sexual, estupro de jovens (sendo que a mulher estupra e os jovens são meninos), alguns problemas dentro de uma academia militar - o abuso de autoridade, a violência psicológica e física que jovens sofrem nestes ambientes, e questiona valores familiares tradicionais, mostrando uma família rica e perfeita em aparência, mas que esconde segredos terríveis. 

Equipe de jovens estudantes da academia militar

The Killing não é cuidadoso em nada. Dispara verdades e realidades para a audiência sem aviso prévio e sem se preocupar com o impacto que elas podem causar na ilusão de uma sociedade perfeitamente heteronormativa. Lida com a sexualidade, com a homossexualidade, com as pessoas que são rotuladas e excluídas do convívio social considerado "normal", expõe algumas feridas que podem fazer uma plateia mais desavisada se chocar. 

Mas é exatamente isso que me atraiu em The Killing - a capacidade de me fazer detestar personagens porque elas fugiam dos padrões, e a possibilidade de repensar essa reação em mim. Eu detestava a mãe de Rosie pela forma como ela não mostrou nem sinais da mãe heróica que abdica de tudo pelos filhos, porque ela entrou em depressão e viveu o luto de uma forma que a fez "antipática" dentro dos padrões estabelecidos pelo mito do amor materno. Eu detestei Sarah Linden pelos mesmos motivos, porque ela amava o filho e não sabia cuidar dele, mesmo que ela quisesse fazer isso. 

O relacionamento entre Linden e Holder foi também conduzido para fora dos padrões. Eles estão claramente "a fim" um do outro, mas se repelem e se atraem ao mesmo tempo. Ela não faz bem a ele, e vice-versa, mas, da mesma forma, eles se complementam. 


Não vou dizer se eles ficam juntos no final, mas isso acaba se tornando irrelevantes perto da quantidade de padrões e estereótipos que The Killing rompe. Não sei dizer se há algum trocadilho, mas o seriado não lida apenas com a morte de pessoas, ele lida com a morte de regras, padrões e máscaras que usamos todos os dias.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Juiz Natural, esse cara.


Episódios recentes da aventura do Judiciário brasileiro me deixaram em uma situação complicada. Como professora de Teoria Geral do Processo, responsável por debater com alunas e alunos sobre os princípios que regem o direito processual, vislumbrei a violação de diversos desses princípios de uma só vez, em um domingo, em um intervalo de praticamente uma hora. 

É difícil lecionar quando a prática destoa absolutamente da teoria. Quando os fundamentos do Direito são apenas discussões tidas em sala de aula que, no "mundo real" da justiça, não representam muita coisa. Discurso vazio. A sensação de que "nada faz sentido" me abateu neste último domingo, a sensação de que o ruído entre o "real" e o "ideal" está cada vez maior me fez refletir sobre o que estamos fazendo com alguns valores mais importantes do nosso Estado de Direito. 

Decidi, em razão da complexidade da situação, fazer algumas postagens sobre o imbróglio "solta Lula, prende Lula" que faz-me sentir compaixão por professores de História em um futuro próximo - pois, dos professores de Direito, tenho é muita pena, mesmo, já que somos nós que enfrentamos diretamente essa celeuma. 

Começo com o começo. Uma defesa que, estrategicamente, decidiu interpor um pedido de habeas corpus, baseado em fato supostamente novo, em um plantão judiciário cujo julgador era muito provavelmente, quase certamente, favorável à tese do peticionário.

Lula teve diversos habeas corpus negados, tanto pelo TRF, quanto pelos STJ[1] e STF. Há mais de uma tese, já levantadas por seus advogados, sendo discutidas em juízo, ou para serem discutidas, em julgamentos que estão desafiando as probabilidades processuais brasileiras. O pedido feito neste domingo, 08/07, tinha de "novo" a situação de que Lula é pré-candidato à presidência nas próximas eleições [2].

Buscando informações no site do TRF4 sobre o plantão judiciário, encontramo-no regulamentado pela Resolução 127 de 2017, que avença a hipótese de competência do plantão em casos de habeas corpus em que a autoridade coatora esteja também sob competência do TRF4 [3]. 

Art. 3º - O plantão judiciário destina-se exclusivamente ao exame de: 
a) pedidos de habeas corpus e mandados de segurança em que figurar como coator autoridade submetida à competência jurisdicional do magistrado plantonista; 

Dessa forma, em uma leitura superficial da norma, podemos afirmar que o plantonista do dia 08/07/18 era competente para analisar pedidos de habeas corpus. Mas, será que todos? Ou qualquer um? A reiteração de um pedido de habeas corpus já seguidamente negado por diversas instâncias e tribunais poderia acontecer dentro da compreensão do artigo 3º da Resolução 127 de 2017 do TRF4 apenas porque nele há a previsão genérica do termo jurídico? 

Entendo que não, pois não há, em verdade, fato novo nem urgente que justificasse o habeas corpus, tanto que parte da decisão do juiz plantonista trouxe de novo o mesmo argumento: que não há, contra Lula, nenhuma decisão condenatória definitiva, transitada em julgado, reacendendo a discussão sobre a presunção de inocência e a prisão após a confirmação da sentença condenatória pelo tribunal.

A defesa de Lula foi, como disse antes, estratégica. Utilizou-se do sistema para provocar uma decisão em que um julgador favorável à tese da defesa fosse o competente para julgá-la. Com isso, violou o princípio do Juiz Natural. 

Há muito venho afirmando que o Juiz Natural representa, de forma peremptória, a proibição de escolha do julgador pelo jurisdicionado. O cidadão, em qualquer situação em que se encontre, não pode, sob pena de ferir o referido princípio, escolher quem julgará seu conflito. A jurisdição precisa ser imparcial e neutra (dentro de suas possibilidades) e, para isso, cerca-se de regras de competência e distribuição de processos para evitar que as partes decidam quem vai por elas decidir. 

O problema seria de grande monta: não se poderia tratar de garantia do Juiz Natural se as partes pudessem escolher livremente para qual juiz elas entregariam suas lides. A imparcialidade ficaria totalmente mitigada, e a legitimidade da jurisdição, prejudicada. [4]

Considerando a reiteração de teses e a fragilidade do suposto "novo fundamento" do habeas corpus decidido em 08/07/18, entendemos que a defesa de Lula aproveitou-se do momento e escolheu seu julgador. A situação da pré-candidatura de Lula não é nova e nem urgente a ponto que não possa esperar decisão pelo juiz prevento para o caso. 

O pedido de habeas corpus feito ao plantão judiciário, não tendo trazido nenhum fato novo urgente que desafiasse a competência do juiz plantonista, viola o princípio do Juiz Natural e, fatalmente, seria anulada posteriormente pelo julgador competente para tanto. 

Essa foi a primeira situação esdrúxula ocorrida no evento domingueiro que movimentou os stories do Instagram do país. Os desdobramentos foram tão bizarros quanto, mas serão analisados a posteriori

Professor de Teoria Geral do Processo, no Brasil, sofre. 

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[1] De fato, o STJ negou, de uma só vez, 143 pedidos de habeas corpus em benefício de Lula, alegando que eram todos padronizados e assinados por cidadãos (não os advogados da defesa do ex-presidente). Mais informações em http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/07/presidente-do-stj-rejeita-143-pedidos-de-habeas-corpus-para-lula.html

[2] Informação que pode ser confirmada aqui: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/07/08/interna_politica,693603/desembargador-manda-soltar-lula.shtml

[3] Confiram a resolução na íntegra, aqui https://www2.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/kkf_sei_resolucao127_plantao_0.pdf

[4] SILVA, Tatiana Mareto. O princípio do Juiz Natural e a distribuição de processos nos Juizados Especiais Cíveis do Espírito Santo. Publicado na Revista da Faculdade de Direito de Campos em http://www.uniflu.edu.br/arquivos/Revistas/Revista08/Discente/Tatiana.pdf
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