quarta-feira, 18 de julho de 2018

Dois seriados para se pensar os padrões heteronormativos - parte 02

Olá, leitoras e leitores.

Hoje volto com a discussão sobre seriados para quebrar a banca da heteronormatividade, e trago o segundo que quero recomendar: The Fall.

ALERTA: A ANÁLISE CONTÉM SPOILERS DOS SERIADOS.



Eu não sei dizer exatamente como cheguei a esse seriado, mas ele também é policial e todas as temporadas giram em torno do mesmo crime - e do mesmo criminoso. Não pensem que, com isso, ele se tornou chato e repetitivo, pois The Fall é intrigante e te mantém preso à trama até o último episódio. 

Com um roteiro mais consistente do que o de The Killing, The Fall conta a história de um assassino em série e da investigação montada para capturá-lo. Essa investigação é comandada por Stella Gibson, convidada especialmente para o caso, e é ela a nossa personagem destaque. 

Stella, que é interpretada pela maravilhosa Gillian Anderson, está longe de ser uma mulher padrão - ela é linda, elegante, magra e está sempre maquiada, mas ela destoa nitidamente dos papéis femininos em geral. E The Fall não tem nenhuma sutileza em criticar a heteronormatividade, já que as falas de Stella são diretamente afrontosas à supremacia masculina, principalmente no meio policial. 




Em um dos primeiros momentos da série, ela convida um total estranho, que também é policial mas que ela acaba de conhecer, para seu quarto. Stella não se importa em dar vazão à sua sexualidade e, inclusive, desafia a heterossexualidade ao convidar, também, uma amiga para uma noite mais íntima. 


Stella constantemente confronta os homens em espaços de poder e frequentemente frustra suas expectativas em relação ao comportamento feminino. Uma de suas passagens me faz lembrar a leitura de Leonardo Boff e Rose Marie Muraro, quando eles afirmam que a origem da vida é feminina e que o masculino (cromossomo Y) é uma espécie de "desvio". 


O seriado nos apresenta, além do enredo, que é muito bom, personagens que passam uma mensagem importante. Tive a impressão de que Stella Gibson é realmente a estrela da série e que todo o resto existe para girar ao seu redor, ou seja, para dar a ela oportunidades de mostrar o quanto ela é maravilhosa. 

Alguns momentos pontuais:
1) Stella não demonstra nenhum tipo de temor de homens, enfrenta-os nos espaços de poder e não se deixa subjugar por ser uma mulher em um espaço essencialmente masculino. 
2) Stella cerca-se de mulheres e, imediatamente, reconhece as capacidades das mulheres ao seu redor.
3) Ela tem empatia pelo sofrimento de outras mulheres e não julga.
4) Stella não demonstra vergonha de revelar segredos íntimos. Ao saber que Paul Spector leu seu diário e quando o objeto vira prova na investigação, ela fala abertamente sobre as situações envolvendo os sonhos que tem e sobre sua vida privada sem que isso a deixe nitidamente constrangida. 
5) Stella confronta os homens que desejam refrear sua liberdade sexual, apontando para a própria liberdade sexual dos homens. Se eles possuem o direito de relacionar-se com quem quiserem e como quiserem sem ser julgados por isso, elas também. 
6) Stella não teme Paul Spector - ele a intriga. E ela não o trata como doente nem o permite que se justifique, ela o trata como um misógino estuprador e assassino, apenas. 



Em alguns momentos, considerei que Stella é suficientemente mordaz para passar a mensagem correta. Não há como ser sutil em relação à desigualdade entre gêneros - ela existe há tanto tempo e de tantas formas que parece que sempre existiu. E, afinal, nenhuma mulher vai conquistar "seu espaço" (o espaço de todas nós, como seres humanos completos que somos) sem uma ruptura total com um sistema que foi construído sobre bases de opressão e desigualdade. 

Stella não odeia homens nem quer ser um homem. Ela odeia um sistema que não a respeita como uma mulher plena e capaz de chefiar uma investigação enorme, de enfrentar um assassino monstruoso (que Stella humaniza e trata como homem), que não considera suas habilidades em antes julgá-la apenas por ser uma mulher no comando. Ela também é confrontada o tempo todo, mas só notamos o seu enfrentamento porque normalizamos a atitude afrontosa do homem. 

E ela não é grosseira nem eleva a voz. Tirando a vez em que ela quebrou o nariz de seu chefe porque ele cruzou limites (sim, ela fez isso!), Stella geralmente confronta os homens que a desqualificam ou julgam com um tom de voz sereno e com uma contestação clara o objetiva da situação. 

Um dos momentos mais marcantes, para mim, da fala de Stella sobre a forma como a sociedade machista encara a sexualidade de homens e mulheres foi quando ela confrontou um colega que a criticava por ter se envolvido sexualmente com outro colega, casado:

É isso que realmente incomoda você, não é? Fica uma noite só? O homem transa com a mulher, o sujeito é o homem, o verbo é transar e o objeto é a mulher. Isso tudo bem. Mulher transa com homem. A mulher é o sujeito e o homem o objeto. Isso não é tão confortável para você é?


Existem diversas matérias enaltecendo o seriado The Fall pelos mesmos motivos que este - Stella Gibson é uma estrela feminista que precisa ser considerada. Mesmo que eu tenha demorado algum tempo para encontrar o seriado, valeu a pena cada minuto assisti-lo e repetir algumas falas. Espero que vocês façam o mesmo. 



PS: encontrei uma matéria do Telegraph cujo título sugere que The Fall é "anti-homem". Não tem nada mais equivocado do que isso, pois o feminismo não é essencialmente contra homens. É contra o machismo e um sistema que só valoriza o masculino. A ruptura com esse sistema não acabará com os homens nem representará uma opressão desses homens, apenas equilibrará a balança para que as mulheres não sejam mais inferiorizadas. 

Imagens obtidas no Google. Termos de pesquisa: "the fall stella gibson" e "the fall netflix" (sem aspas). 

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Dois seriados para se pensar os padrões heteronormativos - parte 01

Bom dia, leitoras e leitores.

Vim aqui recomendar dois seriados Netflix que, apesar de não serem recentes, são ótimos para refletir sobre os padrões heteronormativos, sobre as imposições sociais para o indivíduo, sobre os papéis que nos forçam a cumprir diariamente, desde que nascemos.

ALERTA: A ANÁLISE CONTÉM SPOILERS DOS SERIADOS.

Vamos começar com The Killing, seriado que foi adotado pela Netflix nas temporadas finais.


The Killing é um seriado policial, que tem como personagem principal uma detetive, Sarah Linden, da polícia de Seattle, e seu novo parceiro, Stephen Holder. Escrito por Veena Sud, o seriado tem algumas boas falhas de roteiro e chega a ser tedioso em alguns momentos, mas eu devorei as temporadas e, entre amar e odiar as personagens e suas atitudes, percebi que a mensagem de Sud é clara quanto à ruptura com tudo aquilo que se espera de alguém.

Holder e Linden investigando

Seattle é chuvosa e fria. O crime que faz o seriado girar é o assassinato de uma adolescente de 16 anos, Rosie Larsen. A polícia é mal aparelhada e a detetive Linden não é brilhante, assim como seu parceiro, que é um ex-viciado em anfetaminas. Eles usam celular de flip, tomam muita chuva e demoram muito tempo para desvendar um crime que outros seriados teriam explorado rapidamente.

Mas eu entendo que The Killing não é sobre crimes ou investigações policiais, mas sobre pessoas. Sarah Linden não é uma mulher estereotipada - ela tem um filho "sem pai" (o pai abandonou a ela e ao filho quando o menino tinha 3 anos), e é uma mãe "ruim", para os padrões sociais estabelecidos. Ela não se produz nem se maquia, vive descabelada, usa roupas masculinas e fuma bastante. Ela não reproduz o que se espera de uma mulher nem de uma mãe, e não consegue lidar muito bem com as dificuldades que a vida coloca em sua frente.

Sarah Linden em investigação


Holder também não é um mocinho padrão. Ele é ex-usuário de drogas ilícitas, ele comete muitos erros, fuma muito, está sempre vestindo moletom, o que, segundo seu chefe, não passa nenhum tipo de credibilidade em sua profissão.

A família da jovem morta também é apresentada de forma muito intensa, em que todas as personagens são exploradas e mostradas sem máscaras. A mãe da jovem assassinada enfrenta o luto se afastando de suas "obrigações" para com a casa, o marido e os outros dois filhos pequenos. Ela se tranca dentro de si mesma e ela vai embora, deixando tudo para trás. O pai, apesar de não saber lidar com a reação da mulher, é quem assume a casa e os filhos - mas não o faz da forma heróica que se espera. Ele também comete vários erros e acertos durante o período em que espera o desfecho sobre a morte de sua filha.

Família Larsen assistindo a uma matéria sobre o assassinato de Rosie.

A tia, que se torna a "mãe" substituta para os meninos, é uma mulher com passado de prostituição e que passa longe do exemplo de mulher explorado em diversos seriados. Em verdade, nenhuma personagem em The Killing segue os padrões que categorizam mocinhos e bandidos. O "bem" e o "mal" não estão presentes integralmente em nenhuma personagem, mas também nenhuma delas está afastada desses valores. O seriado lida com personagens em depressão, com doenças mentais não diagnosticadas, não tratadas, mal conduzidas pelos doentes e pelas pessoas que os cercam. 

Depois de resolvido o assassinato de Rosie Larsen, Linden e Holder se envolvem em outro crime bárbaro, que vitima toda uma família, inclusive crianças. Mais uma vez, as personagens apresentadas são disfuncionais, despadronizadas, e o seriado enfrenta temas como abuso sexual, estupro de jovens (sendo que a mulher estupra e os jovens são meninos), alguns problemas dentro de uma academia militar - o abuso de autoridade, a violência psicológica e física que jovens sofrem nestes ambientes, e questiona valores familiares tradicionais, mostrando uma família rica e perfeita em aparência, mas que esconde segredos terríveis. 

Equipe de jovens estudantes da academia militar

The Killing não é cuidadoso em nada. Dispara verdades e realidades para a audiência sem aviso prévio e sem se preocupar com o impacto que elas podem causar na ilusão de uma sociedade perfeitamente heteronormativa. Lida com a sexualidade, com a homossexualidade, com as pessoas que são rotuladas e excluídas do convívio social considerado "normal", expõe algumas feridas que podem fazer uma plateia mais desavisada se chocar. 

Mas é exatamente isso que me atraiu em The Killing - a capacidade de me fazer detestar personagens porque elas fugiam dos padrões, e a possibilidade de repensar essa reação em mim. Eu detestava a mãe de Rosie pela forma como ela não mostrou nem sinais da mãe heróica que abdica de tudo pelos filhos, porque ela entrou em depressão e viveu o luto de uma forma que a fez "antipática" dentro dos padrões estabelecidos pelo mito do amor materno. Eu detestei Sarah Linden pelos mesmos motivos, porque ela amava o filho e não sabia cuidar dele, mesmo que ela quisesse fazer isso. 

O relacionamento entre Linden e Holder foi também conduzido para fora dos padrões. Eles estão claramente "a fim" um do outro, mas se repelem e se atraem ao mesmo tempo. Ela não faz bem a ele, e vice-versa, mas, da mesma forma, eles se complementam. 


Não vou dizer se eles ficam juntos no final, mas isso acaba se tornando irrelevantes perto da quantidade de padrões e estereótipos que The Killing rompe. Não sei dizer se há algum trocadilho, mas o seriado não lida apenas com a morte de pessoas, ele lida com a morte de regras, padrões e máscaras que usamos todos os dias.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Juiz Natural, esse cara.


Episódios recentes da aventura do Judiciário brasileiro me deixaram em uma situação complicada. Como professora de Teoria Geral do Processo, responsável por debater com alunas e alunos sobre os princípios que regem o direito processual, vislumbrei a violação de diversos desses princípios de uma só vez, em um domingo, em um intervalo de praticamente uma hora. 

É difícil lecionar quando a prática destoa absolutamente da teoria. Quando os fundamentos do Direito são apenas discussões tidas em sala de aula que, no "mundo real" da justiça, não representam muita coisa. Discurso vazio. A sensação de que "nada faz sentido" me abateu neste último domingo, a sensação de que o ruído entre o "real" e o "ideal" está cada vez maior me fez refletir sobre o que estamos fazendo com alguns valores mais importantes do nosso Estado de Direito. 

Decidi, em razão da complexidade da situação, fazer algumas postagens sobre o imbróglio "solta Lula, prende Lula" que faz-me sentir compaixão por professores de História em um futuro próximo - pois, dos professores de Direito, tenho é muita pena, mesmo, já que somos nós que enfrentamos diretamente essa celeuma. 

Começo com o começo. Uma defesa que, estrategicamente, decidiu interpor um pedido de habeas corpus, baseado em fato supostamente novo, em um plantão judiciário cujo julgador era muito provavelmente, quase certamente, favorável à tese do peticionário.

Lula teve diversos habeas corpus negados, tanto pelo TRF, quanto pelos STJ[1] e STF. Há mais de uma tese, já levantadas por seus advogados, sendo discutidas em juízo, ou para serem discutidas, em julgamentos que estão desafiando as probabilidades processuais brasileiras. O pedido feito neste domingo, 08/07, tinha de "novo" a situação de que Lula é pré-candidato à presidência nas próximas eleições [2].

Buscando informações no site do TRF4 sobre o plantão judiciário, encontramo-no regulamentado pela Resolução 127 de 2017, que avença a hipótese de competência do plantão em casos de habeas corpus em que a autoridade coatora esteja também sob competência do TRF4 [3]. 

Art. 3º - O plantão judiciário destina-se exclusivamente ao exame de: 
a) pedidos de habeas corpus e mandados de segurança em que figurar como coator autoridade submetida à competência jurisdicional do magistrado plantonista; 

Dessa forma, em uma leitura superficial da norma, podemos afirmar que o plantonista do dia 08/07/18 era competente para analisar pedidos de habeas corpus. Mas, será que todos? Ou qualquer um? A reiteração de um pedido de habeas corpus já seguidamente negado por diversas instâncias e tribunais poderia acontecer dentro da compreensão do artigo 3º da Resolução 127 de 2017 do TRF4 apenas porque nele há a previsão genérica do termo jurídico? 

Entendo que não, pois não há, em verdade, fato novo nem urgente que justificasse o habeas corpus, tanto que parte da decisão do juiz plantonista trouxe de novo o mesmo argumento: que não há, contra Lula, nenhuma decisão condenatória definitiva, transitada em julgado, reacendendo a discussão sobre a presunção de inocência e a prisão após a confirmação da sentença condenatória pelo tribunal.

A defesa de Lula foi, como disse antes, estratégica. Utilizou-se do sistema para provocar uma decisão em que um julgador favorável à tese da defesa fosse o competente para julgá-la. Com isso, violou o princípio do Juiz Natural. 

Há muito venho afirmando que o Juiz Natural representa, de forma peremptória, a proibição de escolha do julgador pelo jurisdicionado. O cidadão, em qualquer situação em que se encontre, não pode, sob pena de ferir o referido princípio, escolher quem julgará seu conflito. A jurisdição precisa ser imparcial e neutra (dentro de suas possibilidades) e, para isso, cerca-se de regras de competência e distribuição de processos para evitar que as partes decidam quem vai por elas decidir. 

O problema seria de grande monta: não se poderia tratar de garantia do Juiz Natural se as partes pudessem escolher livremente para qual juiz elas entregariam suas lides. A imparcialidade ficaria totalmente mitigada, e a legitimidade da jurisdição, prejudicada. [4]

Considerando a reiteração de teses e a fragilidade do suposto "novo fundamento" do habeas corpus decidido em 08/07/18, entendemos que a defesa de Lula aproveitou-se do momento e escolheu seu julgador. A situação da pré-candidatura de Lula não é nova e nem urgente a ponto que não possa esperar decisão pelo juiz prevento para o caso. 

O pedido de habeas corpus feito ao plantão judiciário, não tendo trazido nenhum fato novo urgente que desafiasse a competência do juiz plantonista, viola o princípio do Juiz Natural e, fatalmente, seria anulada posteriormente pelo julgador competente para tanto. 

Essa foi a primeira situação esdrúxula ocorrida no evento domingueiro que movimentou os stories do Instagram do país. Os desdobramentos foram tão bizarros quanto, mas serão analisados a posteriori

Professor de Teoria Geral do Processo, no Brasil, sofre. 

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[1] De fato, o STJ negou, de uma só vez, 143 pedidos de habeas corpus em benefício de Lula, alegando que eram todos padronizados e assinados por cidadãos (não os advogados da defesa do ex-presidente). Mais informações em http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/07/presidente-do-stj-rejeita-143-pedidos-de-habeas-corpus-para-lula.html

[2] Informação que pode ser confirmada aqui: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/07/08/interna_politica,693603/desembargador-manda-soltar-lula.shtml

[3] Confiram a resolução na íntegra, aqui https://www2.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/kkf_sei_resolucao127_plantao_0.pdf

[4] SILVA, Tatiana Mareto. O princípio do Juiz Natural e a distribuição de processos nos Juizados Especiais Cíveis do Espírito Santo. Publicado na Revista da Faculdade de Direito de Campos em http://www.uniflu.edu.br/arquivos/Revistas/Revista08/Discente/Tatiana.pdf

domingo, 24 de junho de 2018

Porque a vida das mulheres importa


Texto publicado no jornal O Fato em março de 2018.

O mês de março é geralmente o período do mês em que se rendem homenagens a mulheres. Além da celebração do Dia Internacional da Mulher, entidades e organizações costumam dedicar-se a celebrações que se estendem por todo o mês, sempre colocando o foco na mulher e no feminino. A cada ano que passa, no entanto, aumentam os registros de mulheres mortas em casos de violência doméstica ou sexual. O Mapa da Violência de 2015 identificou que a criação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) não representou uma redução no registro de assassinatos de mulheres no Brasil. Seja porque mais mulheres foram mortas, seja porque mais denúncias foram feitas, a lei não conseguiu cumprir seu objetivo de erradicar a violência doméstica. 

Também em 2015 foi alterado o artigo 121 do Código Penal para acrescentar uma qualificadora ao crime de homicídio - surgindo, assim, o feminicídio no Direito brasileiro. Não usarei este espaço para tecer críticas possíveis ao tipo penal, apenas relevar um dos objetivos da alteração legislativa, que foi expor, evidenciar, dar nomea um crime que tem conotação e contexto diferentes do homicídio. 

O feminicídio nomeou o crime de matar mulheres por serem mulheres. Fez com que se expusesse a realidade cultural em que homens se acham no direito de controlar e decidir sobre a vida das mulheres. A alteração normativa não serviu apenas para a agravar a pena do condenado por feminicídio, mas para mostrar que esse crime existe- que mulheres morrem, todos os dias, por serem mulheres, porque a vida delas importa menos do que a vida dos homens

Não são poucas as tentativas de banalizar ou deslegitimar o feminicídio, exatamente como ocorre com a Lei Maria da Penha, já calejada por tantos ataques à sua constitucionalidade. Os argumentos se servem da isonomia, festejado princípio que garante a todos tratamento igualitário da lei, para afirmar que é discriminatório punir com mais rigor um assassino apenas porque sua vítima é mulher. Afirmam, também, que a inclusão do feminicídio no Código Penal foi uma medida desnecessária, uma vez que já existe crime para punir quem mata pessoas. 

Tais argumentos, que se respaldam em uma mítica igualdade entre homens e mulheres, têm o único intuito de desqualificar as lutas femininas e a atenção do Estado para a violência permanente a que as mulheres são submetidas, todos os dias, na sociedade patriarcal ocidental. A maior parte da violência sofrida por mulheres é silenciosa e acontece dentro de casa, cometida por sua própria família. Pais, maridos, companheiros, namorados - esses são os maiores estupradores e assassinos de meninas e mulheres. Mulheres sofrem, de forma recorrente, violência moral e psicológica, tendo violados seus direitos de fala, de participação política, de trabalhar pelo próprio sustento, de decidir sobre sua própria vida e sexualidade. Mulheres devem temer aqueles com quem dividem a cama, aqueles que lhes oferecem flores em dias especiais, aqueles que juraram amá-las. 

A violência contra a mulher reveste-se de características diferentes da violência urbana regular. Mulheres geralmente não morrem nas mesmas situações que homens. Homens, esses que violentam e assassinam mulheres porque elas se recusaram a obedecê-los ou porque não aceitaram ser um mero objeto nas mãos de seus parceiros. Então, o feminicídio veio mostrar a todos e a todas que a vida das mulheres importa, sim. Que a violência contra a mulher é crime, não importando como e em que contexto ela seja cometida. 

Por causa da naturalização da violência contra mulheres, no Brasil, o Estado precisa agir. Alguns passos foram dados, mas ainda são insuficientes. É urgente que políticas públicas sejam pensadas para a redução real do número de feminicídios. Encerro minha participação neste espaço com uma frase que toca o fundo da questão: “Não se nasce mulher, morre-se” (autor anônimo). 

sábado, 23 de junho de 2018

A quem interessa o discurso deslegitimador dos Direitos Humanos?


Texto publicado no jornal O Fato em abril de 2018.

O cenário brasileiro, no Século XXI, vem sendo pintado com cores sombrias. O país internacionalmente conhecido por suas grandes festas e celebrações, por um povo carismático e acolhedor, vive um período de retrocesso em relação aos direitos humanos reconhecidos. Esse retrocesso se impõe legitimado por um discurso de ódio cujo objetivo é convencer as pessoas que os direitos, historicamente reconhecidos como pertencentes a todo ser humano, são um obstáculo ao desenvolvimento da humanidade e à própria vida dessas pessoas. 

Não é incomum, em redes sociais, na mídia e em outros espaços públicos, falas que enfatizam o quanto os direitos humanos são ruins para a sociedade. São inverdades que, repetidas muitas vezes e da mesma forma, ecoam como certezas. Quem nunca ouviu dizer que “os direitos humanos só protegem bandidos”? Ou que os direitos humanos precisam acabar? Ou que devemos ter “direitos humanos para humanos direitos”? 

Pois aliado ao discurso há também um movimento político, midiático e, por que não, social, que caminha no sentido de criminalizar todos aqueles que lutam pela efetividade dos direitos humanos. Pessoas que dedicam a vida a buscar liberdade, igualdade e fraternidade como ideais universais, são rotuladas como “pessoal dos direitos humanos”, em uma tentativa de desqualificar a sua luta ao vinculá-la com algo negativo, pejorativo, desumano.  

Os direitos humanos não são entes personalizados que estão presentes nos Estados para atuar em determinado sentido. São direitos. São históricos. Não foram dados, foram reconhecidos depois de muita luta e sangue derramado, por aquelas pessoas que vieram antes de nós e que acreditavam na primazia da dignidade humana. São nossos direitos, de todos os seres humanos. São a garantia da nossa vida, da nossa liberdade. 

Devemos nos questionar a quem interessa o projeto de desinformação e desqualificação dos direitos humanos. Por que o Brasil desponta como um país que, internamente, defende violar esses direitos.  A nível mundial, busca-se cada vez mais efetivar os direitos humanos, impedir que eles sejam desconsiderados, estendê-los a cada vez mais pessoas por meio da redução das desigualdades. Por que, então, o discurso brasileiro vem no sentido oposto a esse anseio por mais direitos? 

É preciso, também, compreender que os direitos humanos não protegem determinados grupos, eles são universais. São de todos nós. Quando defendemos que eles sejam reduzidos ou violados, nos colocamos como potenciais vítimas dessas violações. Não há como traçar limites ou barreiras - o fim da liberdade para uns é o fim da liberdade para todos. 

Informar é preciso. Conhecer sobre os direitos humanos, compreender sua origem e justificativa história, é essencial para que possamos interromper esse projeto de deslegitimação que afeta a todos nós de forma nefasta. Não podemos aceitar que nos convençam de que devemos abrir mão de direitos humanos já reconhecidos e tão arduamente conquistados. Temos que combater a violação desses direitos; a sistemática violação que o Estado brasileiro nos impõem em não efetivar as políticas públicas relacionadas à saúde, à educação, à redução da pobreza, entre outras. Estamos em um estado de permanente violação de direitos humanos e devemos lutar contra o discurso que nos convence que a culpa disso é dos próprios direitos.

sábado, 28 de abril de 2018

O discurso de ódio, a liberdade de expressão e as redes sociais.


Texto publicado no Jornal O Fato em 29/12/17.

A liberdade foi o primeiro direito humano expressamente reconhecido. Desde o Cilindro de Ciro, que data do ano 539 AC, o direito à liberdade se mostra como fundamental à existência digna do ser humano. Essa liberdade, no entanto, pode assumir diversas formas e faces, seja o direito de ir e vir até o direito de pensar livremente.

O Direito brasileiro, na Constituição Federal de 1988, eleva a liberdade como um direito individual fundamental, estabelecida principalmente no artigo 5º. Entre as "liberdades" reconhecidas, está a liberdade de expressão, a religiosa, a de pensamento, a de ir e vir. O que isso significa? Que o Estado não deve agir de forma a retirar dos indivíduos essas liberdades garantidas.

Mas, consideremos. A liberdade é um direito absoluto? Existe algum direito que seja absoluto, que não possa ser restringido? A resposta, para as duas perguntas, é não. O célebre dito popular que afirma que "o meu direito acaba quando começa o do outro" pode ser aplicado quando se trata de direitos fundamentais, também, pois o direito de uns não pode representar a opressão de outros.

Então, a liberdade de se expressar não é absoluta. O nosso direito de dizer o que queremos é limitado pelo respeito, pela ética, pela alteridade. O ordenamento jurídico brasileiro, como um todo, não reconhece o direito a "dizer o que se quer" sem que isso represente consequência alguma. Não podemos usar a nossa liberdade de expressão para propagar o ódio, a violência, ou para incitar pessoas umas contra as outras, por exemplo.

Na era das redes sociais, vemos muitas pessoas abusando do direito de se expressar livremente. O anonimato proporcionado pela distância entre quem fala (escreve) e quem ouve (lê) facilita com que indivíduos ou grupos, impulsionados por uma crença equivocada sobre a liberdade de expressão, usem as redes sociais para disseminar preconceito e causar mal-estar entre outros indivíduos ou grupos. Isso é o que chamamos de discurso de ódio.

Não existe opinião que legitime a violação de direitos humanos. Emitir qualquer opinião, de forma desrespeitosa e sem considerar o direito de outras pessoas, não encontra respaldo na liberdade de expressão. Usar as redes sociais para agredir verbalmente indivíduos diferentes, grupos com ideias antagônicas, não encontra respaldo na liberdade de expressão. Esse comportamento de alguns tem sido levado frequentemente ao Judiciário, e o ofensor, aquele que propaga discursos de ódio pelas redes sociais, é condenado a indenizar monetariamente o ofendido.

Precisamos compreender que a liberdade de expressão, como direito fundamental, não garante imunidade a "opiniões" que representem incitação ao ódio. A nossa liberdade de nos expressarmos encontra limite na liberdade do outro em também se expressar. E a expressão não se resume a dizer palavras na internet, mas a viver a nossa vida da forma que nos faça felizes. Não há liberdade irrestrita sem consequências, morais ou jurídicas, portanto a liberdade como direito fundamental não respalda o ódio, o preconceito, a violência. Pensemos nisso.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

As duas mortes das mulheres


Escrevi esse texto há semanas, mas não publiquei. Decidi publicá-lo agora, mesmo tanto tempo depois, pois Marielle não pode ser esquecida. 

No passado mês de março de 2018, o Brasil e o mundo se chocaram com o assassinato da vereadora Marielle Franco, do Rio de Janeiro. O crime, ainda não solucionado, segue investigado tendo como hipótese a de execução. Marielle e Anderson, que dirigia o veículo alvejado, morreram naquela noite, mas foi Marielle quem sofreu com a morte dupla, o que geralmente ocorre com todas as mulheres vítimas de crimes. Tão logo a comoção pelo assassinato dominou a mídia, as redes sociais e as ruas, o legado de Marielle começou a ser destruído por notícias e informações falsas.

Inicialmente, diziam que ela tinha causado a própria morte. Que sua "conexão com criminosos" (não provada em nenhuma das notícias) ou "os bandidos que ela protegia" (afirmação genérica para atacar qualquer um e qualquer uma que se coloque publicamente como defensor de direitos humanos para grupos minoritários) levaram ao assassinato. Depois, questionaram a ênfase dada ao crime - afinal, tantas pessoas morrem, por que Marielle merecia tanto "estardalhaço"?

Por fim, passaram a atacar Marielle pessoalmente, com uma matéria forjada, manipulada, vinculada a uma imagem que não era dela, buscando justificar o injustificável - o assassinato de uma pessoa. Quando nada pareceu surtir efeito, os ataques chegaram até à legitimidade de Marielle, que "teria sido eleita pela elite, portanto não representava a favela". Como se isso maculasse o trabalho que ela realizava nas comunidades, em prol dos direitos para minorias.

Infelizmente, ela não foi a única mulher a sofrer com as duas mortes. Quando uma mulher é assassinada, muitas das vezes ela é responsabilizada por sua própria morte. A mulher tem sua vida ceifada e, depois, tem sua honra destruída pelos que insistem em, publicamente, atribuir a ela a culpa pelo ato criminoso.

Conheci uma jovem que também foi assassinada a tiros. Quando recebemos a notícia de sua morte, ainda não sabíamos sobre nada - quem era o atirador ou o motivo do crime. Ela estava em casa, já dentro da garagem, e suspeitamos de feminicídio. Não demorou nem doze horas para que a vida dessa mulher fosse exposta e, depois de sua morte, ela fosse morta novamente. Bradaram que ela "procurou encrenca" já que era prostituta. Não sei se ela era. Mas afirmava-se como se ela fosse e como se isso fosse motivo para um crime tão bárbaro. Imediatamente, a comoção pelo crime virou nossa cruzada na defesa da honra da vítima.

Mulheres morrem duas vezes. Marielle foi assassinada no dia 14 de março de 2018 e hoje, quase 1 mês após o crime, ainda não sabemos quase nada sobre ele. Mas toda a vida de Marielle foi esmiuçada para que ela pudesse ser responsabilizada pelo crime do qual foi vítima. Não conseguiram, mentiram.

Quantas mulheres não são estupradas por suas roupas ou comportamento? Quantas mulheres não apanham dos maridos e companheiros porque fizeram algo para provocá-los? Quantas meninas não são abusadas por familiares porque provocaram? Quantas adolescentes são estupradas porque se sensualizaram demais? Quantas mulheres não foram assassinadas porque andaram na rua tarde da noite, ou saíram sozinhas, ou eram prostitutas?

A culpa não é da vítima. Mas culpar mulheres por suas mortes é recorrente em nosso país misógino e patriarcal. Mulheres sofrem duas mortes. A do corpo e a da honra.
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