quinta-feira, 12 de julho de 2018

Juiz Natural, esse cara.


Episódios recentes da aventura do Judiciário brasileiro me deixaram em uma situação complicada. Como professora de Teoria Geral do Processo, responsável por debater com alunas e alunos sobre os princípios que regem o direito processual, vislumbrei a violação de diversos desses princípios de uma só vez, em um domingo, em um intervalo de praticamente uma hora. 

É difícil lecionar quando a prática destoa absolutamente da teoria. Quando os fundamentos do Direito são apenas discussões tidas em sala de aula que, no "mundo real" da justiça, não representam muita coisa. Discurso vazio. A sensação de que "nada faz sentido" me abateu neste último domingo, a sensação de que o ruído entre o "real" e o "ideal" está cada vez maior me fez refletir sobre o que estamos fazendo com alguns valores mais importantes do nosso Estado de Direito. 

Decidi, em razão da complexidade da situação, fazer algumas postagens sobre o imbróglio "solta Lula, prende Lula" que faz-me sentir compaixão por professores de História em um futuro próximo - pois, dos professores de Direito, tenho é muita pena, mesmo, já que somos nós que enfrentamos diretamente essa celeuma. 

Começo com o começo. Uma defesa que, estrategicamente, decidiu interpor um pedido de habeas corpus, baseado em fato supostamente novo, em um plantão judiciário cujo julgador era muito provavelmente, quase certamente, favorável à tese do peticionário.

Lula teve diversos habeas corpus negados, tanto pelo TRF, quanto pelos STJ[1] e STF. Há mais de uma tese, já levantadas por seus advogados, sendo discutidas em juízo, ou para serem discutidas, em julgamentos que estão desafiando as probabilidades processuais brasileiras. O pedido feito neste domingo, 08/07, tinha de "novo" a situação de que Lula é pré-candidato à presidência nas próximas eleições [2].

Buscando informações no site do TRF4 sobre o plantão judiciário, encontramo-no regulamentado pela Resolução 127 de 2017, que avença a hipótese de competência do plantão em casos de habeas corpus em que a autoridade coatora esteja também sob competência do TRF4 [3]. 

Art. 3º - O plantão judiciário destina-se exclusivamente ao exame de: 
a) pedidos de habeas corpus e mandados de segurança em que figurar como coator autoridade submetida à competência jurisdicional do magistrado plantonista; 

Dessa forma, em uma leitura superficial da norma, podemos afirmar que o plantonista do dia 08/07/18 era competente para analisar pedidos de habeas corpus. Mas, será que todos? Ou qualquer um? A reiteração de um pedido de habeas corpus já seguidamente negado por diversas instâncias e tribunais poderia acontecer dentro da compreensão do artigo 3º da Resolução 127 de 2017 do TRF4 apenas porque nele há a previsão genérica do termo jurídico? 

Entendo que não, pois não há, em verdade, fato novo nem urgente que justificasse o habeas corpus, tanto que parte da decisão do juiz plantonista trouxe de novo o mesmo argumento: que não há, contra Lula, nenhuma decisão condenatória definitiva, transitada em julgado, reacendendo a discussão sobre a presunção de inocência e a prisão após a confirmação da sentença condenatória pelo tribunal.

A defesa de Lula foi, como disse antes, estratégica. Utilizou-se do sistema para provocar uma decisão em que um julgador favorável à tese da defesa fosse o competente para julgá-la. Com isso, violou o princípio do Juiz Natural. 

Há muito venho afirmando que o Juiz Natural representa, de forma peremptória, a proibição de escolha do julgador pelo jurisdicionado. O cidadão, em qualquer situação em que se encontre, não pode, sob pena de ferir o referido princípio, escolher quem julgará seu conflito. A jurisdição precisa ser imparcial e neutra (dentro de suas possibilidades) e, para isso, cerca-se de regras de competência e distribuição de processos para evitar que as partes decidam quem vai por elas decidir. 

O problema seria de grande monta: não se poderia tratar de garantia do Juiz Natural se as partes pudessem escolher livremente para qual juiz elas entregariam suas lides. A imparcialidade ficaria totalmente mitigada, e a legitimidade da jurisdição, prejudicada. [4]

Considerando a reiteração de teses e a fragilidade do suposto "novo fundamento" do habeas corpus decidido em 08/07/18, entendemos que a defesa de Lula aproveitou-se do momento e escolheu seu julgador. A situação da pré-candidatura de Lula não é nova e nem urgente a ponto que não possa esperar decisão pelo juiz prevento para o caso. 

O pedido de habeas corpus feito ao plantão judiciário, não tendo trazido nenhum fato novo urgente que desafiasse a competência do juiz plantonista, viola o princípio do Juiz Natural e, fatalmente, seria anulada posteriormente pelo julgador competente para tanto. 

Essa foi a primeira situação esdrúxula ocorrida no evento domingueiro que movimentou os stories do Instagram do país. Os desdobramentos foram tão bizarros quanto, mas serão analisados a posteriori

Professor de Teoria Geral do Processo, no Brasil, sofre. 

-----

[1] De fato, o STJ negou, de uma só vez, 143 pedidos de habeas corpus em benefício de Lula, alegando que eram todos padronizados e assinados por cidadãos (não os advogados da defesa do ex-presidente). Mais informações em http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/07/presidente-do-stj-rejeita-143-pedidos-de-habeas-corpus-para-lula.html

[2] Informação que pode ser confirmada aqui: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/07/08/interna_politica,693603/desembargador-manda-soltar-lula.shtml

[3] Confiram a resolução na íntegra, aqui https://www2.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/kkf_sei_resolucao127_plantao_0.pdf

[4] SILVA, Tatiana Mareto. O princípio do Juiz Natural e a distribuição de processos nos Juizados Especiais Cíveis do Espírito Santo. Publicado na Revista da Faculdade de Direito de Campos em http://www.uniflu.edu.br/arquivos/Revistas/Revista08/Discente/Tatiana.pdf

Nenhum comentário:

Postar um comentário

emerge © , All Rights Reserved. BLOG DESIGN BY Sadaf F K.