Episódios recentes da aventura do Judiciário brasileiro me deixaram em uma situação complicada. Como professora de Teoria Geral do Processo, responsável por debater com alunas e alunos sobre os princípios que regem o direito processual, vislumbrei a violação de diversos desses princípios de uma só vez, em um domingo, em um intervalo de praticamente uma hora.
É difícil lecionar quando a prática destoa absolutamente da teoria. Quando os fundamentos do Direito são apenas discussões tidas em sala de aula que, no "mundo real" da justiça, não representam muita coisa. Discurso vazio. A sensação de que "nada faz sentido" me abateu neste último domingo, a sensação de que o ruído entre o "real" e o "ideal" está cada vez maior me fez refletir sobre o que estamos fazendo com alguns valores mais importantes do nosso Estado de Direito.
Decidi, em razão da complexidade da situação, fazer algumas postagens sobre o imbróglio "solta Lula, prende Lula" que faz-me sentir compaixão por professores de História em um futuro próximo - pois, dos professores de Direito, tenho é muita pena, mesmo, já que somos nós que enfrentamos diretamente essa celeuma.
Começo com o começo. Uma defesa que, estrategicamente, decidiu interpor um pedido de habeas corpus, baseado em fato supostamente novo, em um plantão judiciário cujo julgador era muito provavelmente, quase certamente, favorável à tese do peticionário.
Lula teve diversos habeas corpus negados, tanto pelo TRF, quanto pelos STJ[1] e STF. Há mais de uma tese, já levantadas por seus advogados, sendo discutidas em juízo, ou para serem discutidas, em julgamentos que estão desafiando as probabilidades processuais brasileiras. O pedido feito neste domingo, 08/07, tinha de "novo" a situação de que Lula é pré-candidato à presidência nas próximas eleições [2].
Buscando informações no site do TRF4 sobre o plantão judiciário, encontramo-no regulamentado pela Resolução 127 de 2017, que avença a hipótese de competência do plantão em casos de habeas corpus em que a autoridade coatora esteja também sob competência do TRF4 [3].
Art. 3º - O plantão judiciário destina-se exclusivamente ao exame de:a) pedidos de habeas corpus e mandados de segurança em que figurar como coator autoridade submetida à competência jurisdicional do magistrado plantonista;
Dessa forma, em uma leitura superficial da norma, podemos afirmar que o plantonista do dia 08/07/18 era competente para analisar pedidos de habeas corpus. Mas, será que todos? Ou qualquer um? A reiteração de um pedido de habeas corpus já seguidamente negado por diversas instâncias e tribunais poderia acontecer dentro da compreensão do artigo 3º da Resolução 127 de 2017 do TRF4 apenas porque nele há a previsão genérica do termo jurídico?
Entendo que não, pois não há, em verdade, fato novo nem urgente que justificasse o habeas corpus, tanto que parte da decisão do juiz plantonista trouxe de novo o mesmo argumento: que não há, contra Lula, nenhuma decisão condenatória definitiva, transitada em julgado, reacendendo a discussão sobre a presunção de inocência e a prisão após a confirmação da sentença condenatória pelo tribunal.
A defesa de Lula foi, como disse antes, estratégica. Utilizou-se do sistema para provocar uma decisão em que um julgador favorável à tese da defesa fosse o competente para julgá-la. Com isso, violou o princípio do Juiz Natural.
Há muito venho afirmando que o Juiz Natural representa, de forma peremptória, a proibição de escolha do julgador pelo jurisdicionado. O cidadão, em qualquer situação em que se encontre, não pode, sob pena de ferir o referido princípio, escolher quem julgará seu conflito. A jurisdição precisa ser imparcial e neutra (dentro de suas possibilidades) e, para isso, cerca-se de regras de competência e distribuição de processos para evitar que as partes decidam quem vai por elas decidir.
O problema seria de grande monta: não se poderia tratar de garantia do Juiz Natural se as partes pudessem escolher livremente para qual juiz elas entregariam suas lides. A imparcialidade ficaria totalmente mitigada, e a legitimidade da jurisdição, prejudicada. [4]
Considerando a reiteração de teses e a fragilidade do suposto "novo fundamento" do habeas corpus decidido em 08/07/18, entendemos que a defesa de Lula aproveitou-se do momento e escolheu seu julgador. A situação da pré-candidatura de Lula não é nova e nem urgente a ponto que não possa esperar decisão pelo juiz prevento para o caso.
O pedido de habeas corpus feito ao plantão judiciário, não tendo trazido nenhum fato novo urgente que desafiasse a competência do juiz plantonista, viola o princípio do Juiz Natural e, fatalmente, seria anulada posteriormente pelo julgador competente para tanto.
Essa foi a primeira situação esdrúxula ocorrida no evento domingueiro que movimentou os stories do Instagram do país. Os desdobramentos foram tão bizarros quanto, mas serão analisados a posteriori.
Professor de Teoria Geral do Processo, no Brasil, sofre.
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[1] De fato, o STJ negou, de uma só vez, 143 pedidos de habeas corpus em benefício de Lula, alegando que eram todos padronizados e assinados por cidadãos (não os advogados da defesa do ex-presidente). Mais informações em http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/07/presidente-do-stj-rejeita-143-pedidos-de-habeas-corpus-para-lula.html
[2] Informação que pode ser confirmada aqui: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/07/08/interna_politica,693603/desembargador-manda-soltar-lula.shtml
[3] Confiram a resolução na íntegra, aqui https://www2.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/kkf_sei_resolucao127_plantao_0.pdf
[4] SILVA, Tatiana Mareto. O princípio do Juiz Natural e a distribuição de processos nos Juizados Especiais Cíveis do Espírito Santo. Publicado na Revista da Faculdade de Direito de Campos em http://www.uniflu.edu.br/arquivos/Revistas/Revista08/Discente/Tatiana.pdf
[3] Confiram a resolução na íntegra, aqui https://www2.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/kkf_sei_resolucao127_plantao_0.pdf
[4] SILVA, Tatiana Mareto. O princípio do Juiz Natural e a distribuição de processos nos Juizados Especiais Cíveis do Espírito Santo. Publicado na Revista da Faculdade de Direito de Campos em http://www.uniflu.edu.br/arquivos/Revistas/Revista08/Discente/Tatiana.pdf
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